Duelo de Gigantes: Michelangelo ou Da Vinci ?
O retorno a Florença ainda proporcionou a Leonardo ocasião para medir-se, ainda que involuntariamente, com Michelangelo, o outro grande gênio filho da cidade que, aos trinta anos, já despontava como estrela de primeira grandeza no zênite da arte renascentista.A prefeitura da cidade propôs os artistas a ilustração de algum feito militar memorável a de Florença, que servisse à decoração da grande sala do Conselho.
Para a realização da encomenda, Leonardo imaginou um mecanismo, uma espécie de estrado que se abaixava e levantava conforme a necessidade; ele também fez uso de suas próprias tintas, como fazia amiúde, ao invés de usá-las já prontas, como os outro artistas.
Essa mistura de tintas contribuiu, infelizmente, para a formação de escamas que acabou por arruinar toda a pintura, hoje conhecida apenas por um cartão; o mesmo aconteceu, ironicamente, com a obra de Michelangelo.
Leonardo escolheu como tema a batalha de Anghiari, na qual um estandarte é disputado a golpe de lança e a estocadas; os cavaleiros se atiram uns contra os outros num impulso incontido, e até os cavalos, soberbos animais no esplendor da vida, se entremordem furiosamente.
Pode-se sentir, quase, segundo os observadores, o cheiro forte de suas narinas resfolegantes e ouvir seus relinchos, ou então é o patear dos briosos corcéis.

Leonardo soube envolver com sua maestria inigualável homens e animais no mesmo frenesi: já se disse, mesmo, que nesse quadro Leonardo associou a faculdade auditiva à visual, a fim de enriquecer ainda mais a impressão do espectador.
Michelangelo, ou Miguel Ângelo, ao contrário, preferiu tratar o mesmo tema de modo inédito: ventos um grupo de soldados que é surpreendido pela trombeta do alarma enquanto se banha num rio; assim, o artista apresenta uma sucessão magnifica de corpos desnudos, que exibem sua musculatura, transbordando de vida e beleza.
Embora elogiado por todos, Leonardo teve que ceder a palma da vitória a Michelangelo, pelo menos no juízo dos contemporâneos, o que magoou profundamente o pintor dos cavalos. Vale a pena ouvir o relato de Benvenuto Cellini sobre esse episódio singular:
"Esse esboço foi a primeira bela obra que Michelangelo mostrou de suas maravilhosas virtudes; e ele o fez em disputa com um outro que também pintava, Leonardo da Vinci; os esboços deveriam servir para a sala do Conselho da Prefeitura. Representavam a ocasião em que Pisa foi tomada pelos florentinos; e o admirável Leonardo da Vinci tinha escolhido mostrar uma batalha de cavalos em torno de uma bandeira; o que ele fez com mãos divinas.
Miguel Ângelo Buonarroti, também conhecido por Michelangelo no seu esboço, apresentava um destacamento de infantaria que, por ser verão, se banhava no rio Arno; e nesse instante demonstra que o alarme foi tocado; e aquela infantaria desnuda corre para suas armas, e com tão belos gestos que jamais, nem entre antigos nem entre modernos, se viu obra que alcançasse tão elevada concepção; e isso ainda que o esboço de Leonardo fosse belíssimo e admirável".

Briga entre Michelangelo e Da Vinci
A inimizade entre Leonardo e Michelangelo, aliás, começou em Florença, foi continuar em Roma, e só terminou quando Leonardo partiu para a França, de onde jamais retornaria à sua Itália natal.Como são comuns, aliás, na história da arte, e mais ainda na arte da renascença, tais amostras de ciúme e de rivalidade, mesmo entre os maiores artistas, justamente aqueles que parecem exceder a nossa medida ordinária!
Benvenuto Cellini, artesão encantador, é verdade, provido de mãos habilíssimas e de um gosto dos mais requintados, autor de obras-primas que despertavam admiração nos reis, vence de antemão essa disputa acumulando os elogios feitos a si mesmo no confronto com os demais artistas: a sua Autobiografia pulula de louvores dessa natureza; e com exceção do "divino Michelangelo", pouca gente merece o reconhecimento do temperamental Cellini, que além da oratória se provia de um arcabuz.
Nesse ambiente, por sua vez o escultor Sansovino fala mal de Michelangelo e, ao mesmo tempo, é censurado por Cellini porque falava muito bem de si mesmo; e o pintor Rosso Fiorentino desancava a reputação de Rafael a tal ponto que os discípulos deste último, profundamente ofendidos, queriam matá-lo a qualquer custo.
Rosso, porém, incorrigível difamador, ainda falava mal do arquiteto Antonio da San Gallo; também o escultor Bandinello detestava e invejava Michelangelo, ousando atribuir defeitos ao famoso Davi conservado hoje na Galleria Della Academia em Florença.
De quando em quando, em meio à intriga e à paixão, nem mesmo o arcabuz de Cellini bastava; e ele nos conta, magoado, que acabou perdendo uma grande encomenda do rei de França, Francisco I, graças a outro invejoso, o Primaticcio.
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Davi (ou David), escultura de Michelangelo |
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