Dentre outros projetos curiosos e bizarros, pelo menos ara sua época, o final do século XV e começo do século XVI, Leonardo da Vinci possui um, particularmente curioso: o da máquina voadora, um aeroplano primitivo: seu insucesso, já que o projeto não foi levado adiante, apenas serve para realçar a glória de Leonardo também nesse campo.
Leonardo e as Máquinas
Leonardo da Vinci sonhava com máquinas.
É claro que não se tratava do mesmo sonho claro de um inventor moderno: no estágio de desenvolvimento em que se encontrava a ciência e particularmente a mecânica de seu tempo, isso era impossível.
Tampouco Leonardo era afeito à severa disciplina e à investigação metódica de um Roger Bacon, nem concebeu um plano de domínio da natureza tão claro como o de Francis Bacon, por exemplo.
Leonardo, aliás, nem mesmo conseguiu levar a cabo, sempre impelido nesta ou naquela direção, todos os projetos mecânicos a que dava início. Por outro lado, é pena que Leonardo não tenha pesquisado a fundo tudo o que a literatura medieval e romana da época antonina tinha preservado em termos de máquinas e engenhos diversos.
É possível que, a partir dessa literatura, ele tivesse aperfeiçoado, ainda mais as suas catapultas, minas, bombardas, canhões, ap-relhos de sítio e balistas.
O mesmo pode ser dito com respeito às suas máquinas hidráulicas: invenções chinesas como o monjolo e o tear hidráulico o teriam encantado e servido de estímulo para o seu impulso criador, o processo chinês de impressão sobre papel e de fabricação da pólvora também lhe teriam interessado.
Capacidade de Inventar de Leonardo
Entretanto o que desperta a mais sincera e profunda admiração da posteridade ao estudar a obra dita científica de Leonardo da Vinci é a inteligência, a variedade e ambição latente nos seus projetos e nos seus inventos quaisquer que sejam.
E o fato que muitos desses projetos foram considerados simplesmente fantásticos e inexequíveis não diminui absolutamente seu significado enquanto ensaios nascidos da inventividade de um gênio.
Acreditamos que Leonardo se apresenta, na verdade, como um visionário no estilo de Júlio Verne: em meio à obscuridade dos dados biográficos chegaram até nós, podemos pressentir que pela mente brilhante de Leonardo passava a travessia de continentes inteiros.
Passava o tráfico fantástico de veículos ainda mais fantásticos entre os planetas; viam-se cidades flutuantes ou submarinas, moradas e fábricas subterrâneas, túneis de dimensão inimaginável, e, sobretudo, máquinas poderosas, capazes de extrair as forças da natureza a fim de transformar essa mesma natureza.
Enfim, para Leonardo, talvez mais que para qualquer outro grande renascentista, até mesmo Leone Battista Alberti, "o homem é o ministro e o intérprete da natureza".
Mas essa interpretação ocorre da maneira mais curiosa: ela não é racional, simplesmente, não se baseia no cálculo matemático, apesar das simpatias de Leonardo por essa ciência, e apesar de toda a sua admiração pela perspectiva de Brunelleschi e a geometria de Leone Battista Alberti.
Ao contrário, toda a ciência de Leonardo, mesmo quando ele desenha seus veículos e armas de guerra, mesmo quando ele planeja e consegue abrir canais e drenar pântanos a fim de mudar a paisagem da Lombardia, possui sempre algo de misterioso, de secreto, de inesperado.
Algo que, no seu sentido mais profundo, ultrapassa em muito os resultados do cálculo matemático. A ciência de Leonardo lembra os estudos de Goethe sobre a natureza da luz, ou seja, uma mistura de apenas alguns ou até mesmo nenhuns acerto propriamente científico, com uma poesia universal.
Leonardo se assemelha àqueles alquimistas medievais, com seus planos quiméricos e suas conversas diretas com a natureza; se o pintor da
Mona Lisa fosse menos sereno e concentrado em si mesmo, menos dotado de riqueza interior e de concepções artísticas, acreditamos que ele teria feito como Ben-venuto Cellini, isto é, ido à arena arruinada do Coliseu, nalguma noite escura, a fim de evocar os espíritos infernais, e apavorar-se Perante a investida deles.
Outros, porém, eram os espíritos que assombravam Leonardo da Vinci: ele não podia se conformar às limitações de força, de duração e de movimento do homem; pareciam-lhe demasiado estreitos os limites dentro dos quais o rei da criação vivia: por que não possui o homem força ilimitada, que lhe permita o domínio pleno da natureza em torno dele?
Por que ele não vive para sempre, nem tampouco consegue voar?
A máquina voadora
Voar! Este foi para o homem, desde que ele povoa a face da terra, seu sonho mais inalcançável e a causa da sua maior frustração.
Torna-se bastante difícil para nós imaginar, hoje, todo o peso dessa limitação nos milênios que precedem a invenção das nossas modernas máquinas de voar: desde os contos e os relatos imaginários mais antigos, desde os escritores gregos como Luciano, que anteciparam Júlio Verne e transportaram o homem à Lua e aos planetas, fazendo-o alçar vôos imaginários da mais alta envergadura, até os sarracenos com seus tapetes voadores e seus projetos efetivos de mecanismos que jamais foram postos em prática, não se apresentou desafio mais instigante aos olhos do homem inventor.
Daí surge a importância do esboço de Leonardo da Vinci para um aparelho voador, um engenho mais pesado que o ar e capaz de libertar, finalmente, o homem das suas pesadas amarras terrestres.
É pena que Leonardo não tenha conhecido e nem sequer concebido o balão que subiu aos céus de Lisboa, no início do século XVIII, por obra do padre voador, o brasileiro Bartolomeu de Gusmão.
Tampouco temos certeza de que Vasari nos fala mesmo de balõezinhos de brinquedo; qual não teria sido a impressão do grande gênio italiano se tivesse tido o privilégio de testemunhar a subida do primeiro aeróstato, a célebre passarola, como teve seu conterrâneo, o futuro Papa Inocêncio XIII!
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"Helicóptero" de Da Vinci |
Morcegos inventores
O plano de Leonardo, entretanto, era baseado no princípio físico do planador, isto é, tratava-se de uma dedução direta do mesmo principio que serve ao voo dos pássaros, cuidadosamente observado pelo grande intérprete da natureza. É possível, ainda, que o morcego, aquele ser misterioso, anfíbio entre o mamífero e os pássaros, e que sempre despertou nos espíritos mais simples um sentimento misto de terror e admiração, também tenha servido como fonte de inspiração para Leonardo da Vinci.
As asas arqueadas do "ratinho careca" dos franceses bem podem ter merecido um estudo cuidadoso de quem, aliás, se comprazia em ornamentar lagartos a fim de pregar peças nos amigos.
De qualquer modo, o morcego ocupa um lugar conspícuo no rol das tentativas e dos sonhos de voar próprios do homem da renascença; prova disso é a narrativa pitoresca de Benvenuto Cellini acerca de seus projetos de fuga da prisão no sombrio Castelo de Santo Ângelo, projetos esses que envolviam o morcego:
"Esse homem", isto é, o próprio carcereiro chefe, certa personagem tresloucada, "começou a me interrogar acerca do meu modo de fuga: ao qual eu disse que, tendo considerado os animais que voam, e querendo imitar com arte o que eles tinham recebido da natureza, não havia nenhum que pudesse ser imitado, exceto o morcego"; foi então que o carcereiro, dando livre curso aos seus próprios sonhos de voar, concordou entusiasmado com a afirmativa de Cellini, o qual prosseguiu com sua modéstia habitual: "Eu lhe disse que, se ele me desse liberdade para isso, bastava-me voar até Prato, fazendo para mim mesmo um par de asas de cambraia encerada".
Naturalmente nada existe de científico na estranha proposta de Cellini, que acabou fugindo mesmo da sombria prisão, é verdade, mas empregando a velha e boa corda feita de lençóis que todos nós conhecemos.
O curioso episódio, entretanto, serve para nos dar uma ideia da extensão e importância que o sonho de voar possuía entre os renascentistas, e do significado profundo que, por isso, tem para nós o esboço de Leonardo: este último não construiu o aparelho almejado, mas soube alçar vôos muitíssimo mais altos do que podemos imaginar.
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A asa lembra a de um morcego |